MORZINHO… MERRY XMAS

 

JORNAL O GLOBO

EM DEPOIMENTO EMOCIONADO, VIÚVA DE ZÓZIMO LEMBRA OS ÚLTIMOS MOMENTOS DO COLUNISTA.

POR DORITA MORAES BARROS DO GLOBO

SEMPRE DISSE que Zózimo não se encaixaria numa avaliação convencional. Era um ser humano muito, muito especial, com quem tivemos o privilégio de conviver tantos anos. Nesses anos, jamais presenciei mau humor, por mais estressado que ele estivesse. Quando chegava em casa era uma festa. Eu costumava brincar e dizia ao Fernando, aos médicos e a ele mesmo que certamente ele só poderia ser um E.T. “Acho que sou mesmo, só não gostaria de parecer um deles…”, dizia ele.

Zózimo era emoção pura, tinha o dom de cativar e surpreender, por isso vivemos uma paixão intensa e divertida. Na intimidade nos tratávamos carinhosamente de “amorzinho”.

Logo que soubemos da doença, fui prevenida pelos médicos de que Zózimo apresentaria sinais de depressão e em seguida revolta. “É o comportamento padrão…”, explicaram-me.

A primeira reação do Zózimo, ainda na Clínica São Vicente, foi dizer-me: -Não me deixarei deprimir, nem um minuto. E também não vou ficar revoltado. Vou à luta…

– É isso aí – respondi.

– Vamos à luta.

Nosso estado era de perplexidade – afinal, há pouco tempo estávamos encarapitados num elefante vivendo aventuras nas selvas do Nepal. Quando chegamos a Miami e começamos nossa peregrinação pelo hospital Mount Sinai, Zózimo ia alegre na certeza de que caminhava para a cura (até mesmo na cadeira de rodas). A cabeça povoada de sonhos. Afinal, só tinha 56 anos. Amava Fernando, Marcos Santiago e Gabriela. Queria uma casa grande na serra para poder reunir a família e os amigos. Queria um escritório no Jardim Botânico para começar a escrever seu livro. Tinha histórias para contar, ia reproduzir notas. “Quero um livro direito, sério…” No jornal, queria escrever sobre sua luta para vencer o fumo e o álcool. Poderia ajudar as pessoas.

Eu sugeria histórias místicas, pois tivera belíssima experiência com a amiga Carmen Viana. Suas vidas passadas eram fascinantes. Certo dia, no quarto do hospital, começamos um papo sobre a morte. Perguntei como se sentia.

– Quer saber? Não tenho medo nenhum, nenhum – disse.

– Pode parecer estranho, mas é assim… Deus tem sido tão generoso comigo que só me resta dizer muito obrigado. Gostaria muito de conhecer meu anjo de guarda, pois tem sido um amigão.

– Eu gostaria de partir  como a mãe do Forrest Gump, lembra?

– Não lembro direito, como era?

– Assim como você está… alegre, livre, sereno.

Chorei muito, escondida.

No mês de outubro, começou seu calvário, que durou 33 dias. Creio que passamos por todas as unidades intensivas do hospital. Como eu vibrava e harmonizava, passei a ter trânsito livre, portanto ficava junto dele a maior parte do tempo, muitas vezes revezando com o seu filho Fernando. As energias eram pesadas. Vivi a vida, a morte e vários milagres – e também a vida e o sofrimento dos vizinhos. Apesar disso, consegui dar risada.

Certa vez entrou no quarto uma enfermeira bem treinada – vendendo bom astral, difícil naquele momento, pois o coração estava fora de ritmo, a pressão muito baixa, a febre muito alta. Não havia o que dizer.

– Oh! What a marvelous view you have, sir (Que bela vista o senhor tem) – disse ela olhando pela janela.

Zózimo rapidamente respondeu: – Oh!… How lucky I am… (Como eu sou sortudo…)

Morri de rir, o que deixava os médicos e enfermeiros perplexos.

Em outra ocasião, Miami encontrava-se em ritmo de Fla-Flu. Os Marlins jogavam contra os Indians. Zózimo acompanhava atentamente pela televisão, embora estivesse todo entubado, sofrendo. Num determinado momento, pediu ajuda à enfermeira e acenou com dificuldade.

Naquele instante os Marlins fazem um gol, e a enfermeira entusiasmada sapeca-lhe um tapa na mão que acenava, à la Crocodilo Dundee, e se afasta, deixando-o atônito. Quando saiu do tubo e pôde contar a história, rimos às gargalhadas. Mesmo vivendo todo o pesadelo, Zózimo não perdia o senso de humor.

Certo dia, uma amiga telefonou surpresa com a rapidez da doença: – Não é possível… Você estava tão bem, tão lindo outro dia.

– Pois é – respondeu ele. – Por fora bela viola, por dentro pão bolorento. Tudo era atípico. Suas células, seu tipo de câncer, seu comportamento. Depois da primeira sessão de quimioterapia (quase morreu), em vez do repouso recomendado fomos passear e jantar fora. Ouvi dezenas de vezes “Ele é um fenômeno…” “Estamos perto de um milagre.” Quando por diversas vezes desenganado, emergia com vigor e alegria.

Nunca reclamou, mesmo nos momentos mais difíceis. Sobrou coragem, dignidade e impressionante força interior. Zózimo tinha a mania de brincar com os amigos, dizendo “Merry Xmas”, “Happy New Year” em qualquer data.

De minha parte, fazia trabalhos alternativos. Criou-se uma espécie de conexão Carmen-Dorita-Zózimo. Falava com Carmen três vezes ao dia, e mesmo a distância ela participava ativamente. Quando as coisas aconteciam como se havia previsto e decisões eram tomadas de forma intuitiva, eu ficava extremamente confusa. Carmen falava em Física Quântica e eu em Deus.

Numa sexta-feira, acordei mais cedo com um pressentimento estranho. Acordei o Fernando e lhe disse que algo estava errado. Havia perdido a conexão. Voamos para o hospital.

Zózimo havia piorado. Do hospital mesmo, telefono para Carmen, que me diz o mesmo que eu havia sentido:

– Perdi a conexão.

Fiquei arrasada, e os médicos também. Zózimo havia conquistado a todos. Foi cercado de eficiência e carinho por toda a equipe médica do Mount Sinai.

Senti, desolada, naquele fim de semana, que não havia nada mais a fazer… Decidi que embarcaria de volta ao Brasil, na terça-feira, para ficar junto dos meus filhos. Na terça-feira, após ter passado a manhã no hospital, voltei por volta das 16 horas.

– Vim me despedir, amor… abracei-o por trás da cama e o enchi de beijos…

Agradei-o todo. Zózimo estava semiconsciente. Escutava o que eu dizia.

– Amorzinho, eu o amo, muito, muito, muito… Estamos há mil anos juntos e vamos continuar mais mil, tá? Mas aqui está ruim para você, chega de sofrer. Vá embora, amor. Assim… livre… leve… busque a luz… vá em paz… Eu o amo, seus filhos o amam… Você não queria conhecer o anjinho? Chegou a hora… Chame-o… Ele vai ajudá-lo… Você foi tão corajoso… Vai ser agora também… Eu quero um presente, tá?… Você pode me dar um pouco da sua força?

Senti uma energia quase palpável. Então pude dizer de alma para alma: – Boa viagem, companheiro…

Zózimo não morreu. Zózimo partiu serenamente.

No final, quando já mal podia falar, resolvi testá-lo e perguntei:

– Zózimo, Zózimo, como eu me chamo? – insistia. – Qual é o meu nome?

E ele, piscando o olho, cheio de charme, balbuciou…

– Amorzinho…

Foi sua última palavra.

Zózimo Barroso do Amaral, morto em 18 de novembro de 1997, manteve durante 30 anos uma coluna diária em jornal. Tinha genial habilidade para escrever com ironia e humor e tratava de assuntos de economia e política com a mesma desenvoltura com que redigia notas sociais.